30/06/12

e eu contigo

© Maria | Verão, 2009

"A casa como barco no alto mar de Agosto. As ruas como carruagens de noite sossegada. Coisas que passam no mundo. Agora vivo. E tu olhas-me, decidida a existir e, no fundo dos teus olhos, existe também o mundo. E eu contigo." F.M.

29/06/12

é de ti e em ti

© Maria | Verão, 2009


"Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada

- Porém, tu sempre me incendeias.

Porque é de ti que me vem o fogo.

E em ti principiam o mar e o mundo."

Herberto Helder


28/06/12

o meu lápis...

 © Maria
Casa das Histórias - Paula Rego | Cascais, 2009


«Não busques na erva muda, Busca a erva muda.» Um poeta nórdico - Bo Carpelan - escreveu estes dois versos e eu assinalei-os com o meu lápis-encontrador-de-belezas." Gonçalo M. Tavares

27/06/12

respira comigo

© Richard Misrach



"e o ar dos fins de tarde no Verão sobre as pálpebras, tem de haver pálpebras, tem de haver glóbulos, eles devem ter-me explicado, alguém me deve ter explicado, como é, o olho, à janela, frente ao mar, frente à terra, frente ao céu, à janela, exposto ao, no Verão, à tardinha, abrindo-se, voltando a fechar-se... eu devo ter compreendido, devo ter querido, devo ter querido o olho, para mim, devo ter experimentado, experimentei... eles amam-se, uma pessoa ama as vezes que são precisas, precisas para ser feliz... ela chora... chama-se a isso emoção, a força que a emoção tem, com que então a emoção é isso... respira comigo..." Samuel Beckett in, o inominável

26/06/12

assim completo

© Wim Wenders | Pina, 2011


"quando ele criou o céu e a terra, e os deuses,
pôs este monte diante de mim,
assim completo.
mas eu não tinha corpo: era, talvez, um sopro
menos aéreo, no ar.

isto sabes que sei. o resto
é a razão de ser desta viagem..."

António Franco Alexandre

incendiar

© Jorge F. Marques | Câmara Lenta
Izumi Ueda Yuu | Installation title: 1101175503112011


"Incendiar, sim, é um processo
mais simples. Cubro a cabeça de cinza
(não de estrelas!), como se fora um aviso.
Eis-nos chegados ao fim
do mundo! É uma parede considerável, um monumento
ao saber mais antigo,

percorre-nos interiormente! E entretanto
entornamo-nos em todos os sentidos, e sei que no meio esqueço
o essencial, esse frasco de perfume
ao descer do dia? ou seria a noite? quando
as mãos ainda nos aproximavam,

o fogo era uma palavra entre todas a mais fácil,
e só, em nós, a luz vivia."

António Franco Alexandre




25/06/12

quando se enlaçam

© Maria | Singapura, 2011

"as palavras existem no intervalo das palavras.
nenhuma imagem é o permanente futuro dos corpos
quando se enlaçam, quando se sonham"

António Franco Alexandre

22/06/12

uma maneira de tocar as árvores

© Maria | Jardim Botânico - Singapura, 2011


"pois o poema seria
uma terra cor de terra; uma maneira
de tocar as árvores, chegando aos ramos altos,
esse lugar de todos conhecido, aonde nunca fomos,
onde os pássaros sobressaltados assistem
ao crescimento."

António Franco Alexandre

a poesia é

© FJorge | Jardim Botânico, Singapura, 2011

"Julgavas, então que a poesia era um discurso
de palavras em sentido?"

António Franco Alexandre

21/06/12

debruço-me

© Maria | Quinta das Corujeiras - Guimarães, 2012

"De coração nas mãos
debruço-me para ver o seu corpo de árvore estremecendo ao vento Ó dá-me, melodia..."

António Franco Alexandre

20/06/12

laranjeiras, pinheiros, uma oliveira...

© Maria | Quinta das Corujeiras - Guimarães, 2012


"Gostava de ter árvores como alguns têm flores.
Árvores, muitas árvores: laranjeiras, pinheiros, uma oliveira ao pé
do mar, se eu tivesse uma casa a sotavento das dunas
como as que se adivinham em certos quadros de Cézanne
se a luz é muito clara e permanece
com velhos nomes gregos que não sei."


Nicolau Saião

19/06/12

era uma vez...

Once Upon a Time in Anatolia | Bir Zamanlar Anadolu'da, 2011

“I think the human face is the most beautiful landscape,” says Ceylan, slouching down in his chair, and rubbing a hand across his own face, a bespectacled, stubbly portrait of disappointment. “The face tells you everything. It’s the only way to get to the truth because, most of the time, the words we say are not true. We have a tendency to deceive others to protect ourselves.” Nuri Bilge Ceylan in, The Telegraph

era uma vez

Once Upon a Time in Anatolia | Bir Zamanlar Anadolu'da, 2011

“I think the human face is the most beautiful landscape”

Nuri Bilge Ceylan

16/06/12

único e irrepetível

Izumi Ueda Yuu | Instalação "1101175503112011"


"Uma das melhores instalações de sempre. O seu carácter efemero, único e irrepetível, aumentou o privilégio dos poucos presentes perante este memorial de grandes terramotos: Lisboa 1755 / Tóquio 2011.
A Izumi aproveitou também o evento para um apelo à consciência de cada um de nós: ontem mesmo, o governo japonês decidiu reconstruir centrais nucleares e continuar a investir neste tipo de energia (mesmo sabendo que o Japão é assolado frequentemente por terramotos)." F.M.

14/06/12

nascemos curiosos e inteligentes

© Wang Qingsong, Follow Him, 2010

"afoguem professores e autores e teóricos e simpatizantes de gramática, antes que não reste um único ser humano a conseguir entender-se nesta língua que eu aprendi na rua e nos livros (mas não nos livros de gramática)

segue-se um texto de teolinda gersão, a partir dos problemas enfrentados pelos seus netos, em nome dos quais ela escreve." Rui Catalão

«Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: no ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”.

Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: “Ó João, onde está a tua gramática?” Respondo: “Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.” »

12/06/12

não há

© F.M.

Ana Pérez-Queiroga | 'Não há substituto para a experiência', 2012

Exposição colectiva no Palácio dos Duques de Bragança
Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura

10/06/12

o nosso amor

© Fjorge

Lim Shing Ee |
A Dozen of Those, 2011
National Museum of Singapore

"o nosso amor faz-se de coisas destas" 
António Gancho

01/06/12

quando foi que o tempo começou?

© Paul McDonough | Central Park Pond-Kids in Tree, 1973


Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.


Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia poses na hora da fotografia.


Quando a criança era uma criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

Peter Handke