29/03/12

o mundo


 © Paul McDonough | Central Park Pond-Kids in Tree, 1973


"Muitas coisas mudaram o mundo
desde então, o mundo mudou muita coisa em nós."


Niloa Madzirov

28/03/12

a soma de ti


 © Garry Winogrand | Lake Travis, Austin, Texas 1973


Ela está toda ali.
Ela derreteu-se cuidadosamente para ti


Ela é tão nua e singular.
Ela é a soma de ti e do teu sonho.
Escala-a como um monumento, passo a passo.
Ela é sólida.


Ann Sexton

27/03/12

até que a luz

© Juan Pablo Zaramella | Luminaris, 2011

"Até que a luz me trespasse
e dobre o tempo".


Tomas Tranströmer

26/03/12

fazer falar o que não tem palavra

© Arthur Ou

"Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objectos, um catálogo de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Oxalá fosse possível um obra concebida fora de si, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao nosso, mas também para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico..."

Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]


25/03/12

como e quando

© François Truffaut | Fahrenheit 451, 1966


O livro

Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou

da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua

atenção ou alguém o arrumou
em segunda fila na estante...

Tu não o sabes - como o poderias
saber? - mas esse livro descreve

como e quando vais morrer


Jorge Sousa Braga

24/03/12

esqueci-me


 © Francesca Woodman


Entre muitas ocupações
muito urgentes
esqueci-me
de que também há que
morrer

frívolo
abandonei esta obrigação
ou ocupei-me dela
superficialmente

a partir de amanhã
tudo mudará

começarei a morrer com esmero
de maneira sensata com optimismo
sem perda de tempo


Tadeusz Różewicz

23/03/12

triste e alegre

 © Joshua Benoliel | Lisboa, início do século XX


"Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui..."


Álvaro de Campos in, Lisbon Revisited

a fantasia é um lugar onde chove lá dentro*



Pedro Serrazina | 2010


* Italo Calvino,  in seis propostas para o próximo milénio
   [Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

22/03/12

a força das coisas

 © Didier Ruef | Zuerich, 1988

"Começo por contar uma velha lenda.
O imperador Calos Magno em idade avançada apaixonou-se por uma rapariga alemã. Os barões da corte estavam muito preocuppados, ao ver que o soberano, tomado pela fúria amorosa e esquecido da dignidade real, descurava os negócios do Império. Quando de repente a rapariga morreu, os dignatários respiraram aliviados, mas por pouco tempo: porque o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador, mandando levar o cadáver embalsamado para o seu quarto, não queria afastar-se dele. O arcebispo Turpino, aterrado com esta macabra paixão, suspeitou de um encantamento e quis examinar o cadáver. Escondido debaixo da língua morta, achou um anel com uma pedra preciosa. Assim que o anel foi parar às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se a mandar sepultar o cadáver, e transferiu o seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir a esta situação embaraçosa, lançou o anel ao lago de Constança. Carlos Magno apaixonou-se pelo lago e nunca mais quis afastar-se das suas margens."

Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

21/03/12

outros gostam muito


© Henri Cartier-Bresson | Martine Franck, 1967


Alguns gostam de poesia

Alguns —
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.

Não contando as escolas onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil, haverá duas.

Gostam —
mas gosta-se também de sopa de esparguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia —
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.

Wisława Szymborska

da rapidez das coisas

Jardín Botánico Carlos Thays de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires

"Mercúrio, com asas nos pés, leve aéreo, hábil e ágil, adaptável e desenvolto, estabelece as relações entre os deuses entre si e entre os deuses e os homens, entre as leis universais e os casos individuais, entre as forças da natureza e as formas da cultura e entre todos os sujeitos pensantes. Que melhor padroeiro posso escolher para a minha proposta de literatura?"

Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

20/03/12

é o vento



Ólafur Arnalds | Living Room Songs, 2011

«Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança. Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.» Juan Rulfo



Ólafur Arnalds | Living Room Songs, 2011

19/03/12

começar e acabar

Michael Fassbender in, Hunger | Steve McQueen, 2008


'What initially brought me to the subject was the notion of what an individual is capable of doing just in order to be heard,' he says. 'I remember, as a kid, seeing Bobby Sands's image on the news every night and this number underneath, which, I later found out, corresponded to the number of days he had gone without food. That somehow stayed with me. People say, "Oh, it's a political film", but, for me, it's essentially about what we, as humans, are capable of, morally, physically, psychologically. What we will inflict and what we can endure.'

Steve McQueen in, The Guardian

18/03/12

da sensibilidade das coisas

Perseus & Medusa | Trentham Gardens

"Perseu venceu uma nova batalha, massacrou à espadeirada um monstro marinho, libertou Andrómeda. E agora dispõe-se a fazer o que qualquer um de nós faria após uma façanha deste género: vai lavar as mãos. Neste caso o seu problema é onde colocar a cabeça de Medusa. E aqui Ovídio tem versos (IV, 740-752) que considero extraordinários para exprimir a delicadeza de alma que é necessária para se poder ser um Perseu, vencedor de monstros:

«Para que a rija areia não desgaste a cabeça anguícoma, amolece o terreno com uma camada de folhas, estende sobre esta algas nascidas debaixo das águas e aí depõe a cabeça de Medusa de cara para baixo».

Parece-me que não se poderia representar melhor a leveza de que Perseu é o herói, do que com este gesto de refrescante gentileza para com aquele ser monstruoso e tremendo, mas também de certo modo frágil e deteriorável."

Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

17/03/12

por uma paixão profunda

© Willy Ronis | Champigny sur Marne, 1947

"Já citei as Metamorfoses de Ovídio, outro poema enciclopédico que parte, já não da realidade física, mas sim das fábulas mitológicas. Para Ovídio também tudo se pode transformar em novas formas; para Ovídio também o conhecimento do mundo é dissolução da compacidade do mundo; para Ovídio também há uma paridade essencial em tudo o que existe, contra todas as hierarquias de poderes e valores. Se o mundo de Lucrécio é feito de átomos inalteráveis, o de Ovídio é feito de qualidades, de atributos e de formas que definem a diferença entre todas as coisas, plantas, animais e pessoas; mas estes não passam de invólucros de uma substância comum que - se for agitada por uma paixão profunda - se poderá transformar na coisa mais diferente."

Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

16/03/12

da leveza das coisas


"Como a melancolia é a tristeza que se torna leve, assim o humor é o cómico que perdeu o peso corporal"


Italo Calvino in, seis propostas para o próximo milénio
[Charles Eliot Norton Poetry Lectures]

15/03/12

ser moderno

 © Hans Steiner | Jürg Steiner, 1942


 © Hans Steiner |  Swimming pool KaWeDe, Berne, 1935-1940

 © Hans Steiner | Piscine Berne 1945 - 1950



"Hacia 1905, Hermann Bahr decidió: "El único deber, ser moderno". Veintitantos años después, yo me impuse también esa obligación del todo superflua. Ser moderno es ser contemporáneo, ser actual: todos fatalmente lo somos." Jorge Luis Borges



14/03/12

o outro lado da vergonha

© Dave J Hogan | Michael Fassbender & Steve McQueen, 2011


"Do I contradict myself? Very well, then I contradict myself, I am large, I contain multitudes."

Walt Whitman

és



Bon Iver | Bon Iver, 2011

"És e renasces como a pura linha do amanhecer
e como o sol primeiro és incandescente
rosado de repente e logo a pouco
e pouco cada vez mais rubro e mais intenso
até à amarela gema de ovo que é o sol a pôr-se..."


Ruy Belo

13/03/12

a tua beleza

© Maria | Agosto, 2009



A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso.
Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro

...
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.

Fernando Assis Pacheco

12/03/12

no abismo do mundo

Michael Fassbender in, Shame | Steve McQueen


Aquilo que se escreva conservará
cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o
nosso rosto filmado no abismo do mundo.

Herberto Helder

11/03/12

assim, tudo...



Apparat | The Devil's Walk, 2011



"tudo o que vem de ti é um poema"

maria do rosário pedreira

10/03/12

eu e tu

© Nicholas e Sheila Pye

"um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida."


Fernando Assis Pacheco

09/03/12

"lá estou eu..."



Ellen Allien | Dust, 2010


"Lá estou eu a falar de ti outra vez. Tão pouco mais importa." F.M.

08/03/12

um homem uma mulher juntos (eu e tu)

© Fan Ho | Private


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos.
Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.

Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta,
pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.


Fernando Assis Pacheco

07/03/12

a tua canção

© Fan Ho | Approaching Shadow

"Que o meu silêncio seja a tua canção!"

Georg Trakl

06/03/12

o essencial

© Fan Ho | "Afternoon Chat", Tokyo, 2006

"De um modo geral, descobri que numa desgraça, é uma grande prova de força uma pessoa ter que suportar continuamente a solidão. A solidão é mais forte que tudo e conduz-nos outra vez às pessoas."

Franz Kafka

05/03/12

intimidade e solidão

 © Chien-Chi Chang | “A Newly Arrived Immigrant Eats Noodles on a Fire Escape,” New York City, 1998. From the China Town series.

"Preciso muito de solidão. Se calhar toda a gente precisa mesmo sem saber... Aqui é o meu lugar de solidão e de silêncio porque a solidão é também uma forma de silêncio. De silêncio e de intimidade. O ruído de fundo dos automóveis a passar aqui faz parte do silêncio. Não é propriamente... como é que hei-de dizer... um intruso, é quase também silêncio."

Manuel António Pina

03/03/12

ele

© Maria | Marvão, 2012

"É o céu que sobre ti baixar se digna!"

J. W. Goethe

02/03/12

ela e ele

© Eikoh Hosoe


Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Wislawa Szymborska

01/03/12

ele e ela

© Eikoh Hosoe | Kamaitachi #23, 1965

«Ele cravara-lhe as unhas no pescoço,
ela enroscava o corpo, como fazem os anjos nos
banquetes em honra dos heróis. Ele abria as asas,
protegendo-a, ela sugava-lhe o coração, entre
lágrimas, deixando-o marcado pelas garras.»

Jaime Rocha in, Zona de Caça