30/11/12

até não teres medo de morrer


The Cinematic Orchestra | Ma Fleur, 2007

o silêncio

© F.M. | Cemitério, 2011

"O silêncio estrutural das flores."
Herberto Helder

29/11/12

suspender a noite e o coração

© Pedro Almodóvar | La Piel que Habito, 2011


é porque existe o desejo, o olfacto, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
- os que nos vão sobrevive no tempo -
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhámos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

Gonçalo M. Tavares

da natureza


Música: Efterklang | Magic chairs, 2012 | Realização: Kristian Leth 


"O que me atrai é o ser humano. Carrascos ou vítimas, nós nunca somos só uma coisa. A natureza humana é complexa e, como artista, tenho a impressão que a minha função é iluminá-la. Filmo para conhecer o outro e a mim mesmo”  Lee Chang-dong

ver as coisas

© Andrei Tarkovsky | The Mirror, 1975

"Não ponhas o coração à frente dos olhos porque assim não vês as coisas."

Gonçalo M. Tavares

tudo o que vês

© David Claerbout - shadow piece, 2005

Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno
ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos
semelhantes a folhas que não caem. Principia agora
a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se
mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.

Fernando Guimarães

28/11/12

da beleza



Cedar Lake Contemporary Ballet | Coreografia: Benoit-Swan Pouffer
Música: Henri Purcell | Cold Song: "King Arthur", 1691 | Interpretação: Klaus Nomi


What power art thou,
Who from below,
Hast made me rise,
Unwillingly and slow,
From beds of everlasting snow!
See'st thou not how stiff,
And wondrous old,
Far unfit to bear the bitter cold.
I can scarcely move,
Or draw my breath,
I can scarcely move,
Or draw my breath.
Let me, let me,
Let me, let me,
Freeze again...
Let me, let me,
Freeze again to death!

como ainda és possível

© Maria | Alentejo, outono 2012

"Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente"


Ruy Belo

27/11/12

Há músicas


The Irrepressibles | Mirror Mirror, 2010


"Há músicas que só podemos

ouvir de joelhos."

Renata Correia Botelho in, Small Song

o que nos sai do coração

© Maria | Lisboa, outono 2012


Inquietam-me as dedadas
de deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio da alma
na balança, à cicatriz
azul do céu sobre o destino.

O mar pneumático, ao sabor
do qual contra os sentidos se nos fazem
e desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me os sentidos, tenebrosas

crateras escavadas
no espírito e através
das quais, incandescentes, as imagens
do mundo sobre ele próprio se derramam

como uma lava espessa, esses sentidos
que, como aéreos
estigmas, nos imprimem
na carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira de as imagens

do mundo se guindarem
mais alto do que a alma ou o alento
de quem dentro de nós
aviva a sua chama. O que nos sai 
do coração vem a ferver. 

A carne, ao rés 
da qual o céu se encurva, báscula 
que deus deixou nos arredores 
dum qualquer lugarejo 

a encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada, combustível, com raiz
nas mais profundas trevas, a carne âncora
submersa no destino, ergue-se a pique

de novo onde as lembranças
se fazem e desfazem
com todo o azul do céu
lá dentro a procurar rompê-Ia.

Sentados no convés, como se fosse
já noite e nos soubesse
o pão ao ranço da memória, contemplamos
os rudes marinheiros.

Depois que pela encosta procurámos
em vão uma escada de que o último
degrau fosse já dentro da memória,
suspenso na memória,

desfaz-se-nos dos ossos
a carne, com o seu quê de lírico e festivo,
em áreas portuárias onde o mar
nos sai do coração para galgar o molhe,

e, agora que começam
os anos a pesar
mais para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas palavras aos ouvidos:

«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,

«Nas tuas mãos começa o precipício».

Luís Miguel Nava

a árvore certa

© Chris Searl


"No passeio, sob as árvores, quis sentar-se. Procurou a árvore certa, e apoiado nas suas costas, desatou a chorar. Ao baixar a cabeça, caiu-lhe uma lágrima. Chorava sobre os joelhos, sobre os punhos fechados na terra." F.M.

observam-me...



Música: Brideshead Revisited, 1981

Compositor: Geoffrey Burgon [1941 - 2010]


'As minhas lembranças observam-me'

Tomas Tranströmer 

26/11/12

tudo

© Maria | Alentejo, outono 2012


Tudo para os olhos.
E nos olhos um ritmo,
uma cor fugitiva,
a sombra duma forma,
um repentino vento
e um naufrágio infinito.

Octavio Paz

o tempo


© Andrei Tarkovsky | The Mirror, 1975

E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento 

Sophia Mello Breyner Andresen

passion and pain

© Gerhard Richter, Seascape (oil on canvas), 1969

"Contemplating the cloudy sky and the massive trunk of a tree under a magical light is difficult when one is alone. Not being able to feel the pleasure of seeing a magnificent landscape with someone else is a form of torture. That is why I started taking photographs. I wanted somehow to eternalize those moments of passion and pain." Abbas Kiarostami 

24/11/12

essa coisa é que é a verdadeira

© Brillante Mendoza | Lola, 2009

"Provavelmente está tudo dito. Mesmo o sentimento da ociosidade e da inutilidade das palavras é uma sensação infinitamente cansada. E, no entanto, temos que dizer tudo de novo todos os dias, de juntar os pedaços dispersos do mundo e, com eles, descobrir para nós um lugar do nosso tamanho ou, ao menos, uma forma de sentido para aquilo que chamamos vida. E, para isso, tudo o que temos são palavras. O que sabemos: palavras; o que sonhamos: palavras; o que sentimos: palavras; e a nossa própria boca que fala é, também ela, só uma frágil e insegura palavra.
(...)
Está então o cronista diante do mundo e de si próprio. E só pode repetir (na melhor das hipóteses por outras palavras...) aquilo que cada homem imemorialmente repete: o amor e a morte, o medo e a esperança, a alegria e a decepção.
(...)
Também a crónica falará, a partir de hoje, de gente, de factos, de acontecimentos, mas o que dirá é outra coisa. E essa coisa é que é a verdadeira."

Manuel Antonio Pina in, Por outras palavras

Lola



© Brillante Mendoza | Lola, 2009

Brillante Mendoza: - 'It’s about of two women in their twilight years who are trying to help the people that they really love. It’s not just about poverty but also the resilience of these old Filipino women who might not have great physical strength but have tremendous will power.' 

quando tudo ruía



© Peter Greenaway | The Belly of an Architect, 1987  |  Música: Wim Mertens


Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo

Ruy Belo 

23/11/12

o calor das coisas

                                                         © Maria | Lisboa, outono de 2012



"Há dias em que até o cronista mais cínico se reconcilia com o mundo. O mundo é o mesmo, as pessoas são as mesmas, a existência não deixou de ser a tragédia absurda de sempre. Porém, de súbito, no meio do Inverno, o Sol rompe gloriosamente entre as ramagens descarnadas das árvores, o céu é alto e limpo, a luz quase magoa, de tão branca, e então, insensatamente, tudo, mundo e existência, parece fazer sentido.
Talvez, quem sabe?, o coração precise de mais um pretexto para repousar por um momento da desesperança e os olhos para se abrirem para o calor das coisas e para a alegria. Mas em dias assim dir-se-ia que tudo se conjuga numa imensa conspiração contra o cepticismo."

Manuel António Pina, Por outras palavras

palavras, memórias, dias, lugares...


                                                             © F.M. | Cemitério, 2011

"Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam agora, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço." 

Manuel António Pina in, Por outras palavras

Como poderia conformar-me?

© F.M. | Cemitério, 2011


© F.M. | Cemitério, 2011

"Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio Monteiro. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?" 

Manuel António Pina in, Por outras palavras

se houvesse

                             © Maria | Lisboa, 2012

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas...
Herberto Helder *
*nasceu a 23 de Novembro de 1930

22/11/12

hei-de passar um fio


© Fjorge | Serra do Marão, 1989


... hei-de passar um fio através dos meus poemas para que o tempo
e os acontecimentos fiquem unidos,
E todas as coisas do universo sejam milagres perfeitos, cada um tão
profundo como os outros.

Não irei escrever poemas que se refiram a partes,
 Mas hei-de escrever poemas, canções, pensamentos que se refiram
ao todo,
E não hei-de cantar referindo-me a um dia, mas sim referindo-me
a todos os dias,
E não hei-de fazer um poema ou a mínima parte de um poema
que não se refira à alma.

Porque, após ter olhado para os objectos do Universo, vi que não
existe um, nem uma partícula de um que não se refira à
alma.

Walt Whitman

deslumbradamente descobrir

                                                    © Maria | Lisboa, outono de 2012

"São seres silenciosos que, a nosso lado, partilham quotidianamente a mesma única vida, a sua e a nossa vida. Mal damos por elas, as árvores, tão comum e familiar é a sua antiquíssima presença perto de nós, e tão anónima. A maior parte das vezes pouco mais somos capazes de dizer do que 'árvore', ou 'árvores', porque também as nossas palavras se foram, pouco a pouco, tornando silenciosas. E, no entanto, cada árvore, como cada um de nós, é um ser absoluto e irreptível, idêntico apenas mutantemente a si mesmo, uma vida única com uma história única, um passado para sempre atado, de forma única, ao nosso próprio passado. (...) O que há, como dizia o outro, é pouca gente para dar por isso. E para deslumbradamente descobrir que o belo é útil por ser belo."

Manuel António Pina in, Por outras palavras

21/11/12

io, este poema é para ti

© F.M. | Valado dos Frades, 2012


"Porque a amizade (já o disse antes) não é uma dádiva do céu, é uma espécie de tesouro escondido onde só se alcança depois de ter vencido caminhos e tempestades, e ter enfrentado monstros e gigantes, e ter atravessado florestas e subido montanhas, mil vezes soçobrando e mil vezes recomeçando de novo a partir da solidão e do exílio. E porque cada um de nós pode, acerca dos amigos, dizer como nos ahadith: "Eu era um tesouro escondido e por eles fui revelado..."  Manuel António Pina, in Por outras palavras 

tão exactas como o amor

© Andrei Tarkovsky | Ivan’s Childhood, 1962



"As instruções cénicas devem conter a objectividade pura que tem a poesia, ou seja, devem ser bonitas. E fortes. Devem ser tão exactas como o amor, esse grande alvoroço, essa inexactidão bela." Gonçalo M. Tavares

se o homem pudesse dizer o que ama


Música: J. S. Bach | St Matthew Passion, 1727 


Se o homem pudesse dizer o que ama,
Se o homem pudesse levar o seu amor pelo céu
Como uma nuvem na luz;
Se como muros que se derrubam,
Para saudar a verdade erguida no meio,
Pudesse derrubar o seu corpo para deixar só a verdade do amor,
A verdade de si mesmo;
Que não se chama glória, fortuna ou ambição,
Mas sim amor ou desejo,
Eu seria aquele que imaginava;
Aquele que com a língua, os seus olhos e as suas mãos
Proclama perante os homens a verdade ignorada,
A verdade do seu amor verdadeiro.


Luís Cernuda

e naquela noite

© Andrei Tarkovsky | The Mirror, 1975


Naquela noite, quanto tudo estava calmo, ouvi as águas rolar
continuamente, lentas sobre as margens,
Ouvi o assobio sussurrado do líquido e das areias, como que dirigindo-se a
mim, cochichando, felicitando-me,
Porque aquele que amo dormia comigo sob a mesma coberta
na noite fria,
No sossego, nos outonais raios de luar, seu rosto inclinado
sobre mim,
Seu braço em redor do meu peito, suavemente – e naquela noite
fui feliz.

Walt Whitman

20/11/12

a vida aspirada para dentro

© F.M. | 2012


«Ele parecia que ia aspirar tudo». Traduzida à letra, a frase da mãe soa tão esquisita quanto sintomática: o brilhantismo de DFW é perturbante, aflitivo: a grandiosidade da sua escrita reside na atenção e detalhe com que sonega a banalidade daquilo que nos é comum. Ele parece aspirar tudo. Quem sabe da dificuldade de conseguir escrever uma frase com uma impressão mínima de real lá dentro, sabe que há algo nisto de super-humano: a vida aspirada para dentro da escrita, e a pulsar. A questão é: o que ficou de sobra nos bolsos, para viver fora da escrita, para além de confusão e medo? Evitemos a resposta. Flash-back: retrato de um artista enquanto jovem extraterrestre."

Rui Catalão in, 
 DF Wallace enquanto experiência religiosa

E, no meio do êxtase,

© Jorge F. Marques | Paris, 2012



"Com essa repentina liberdade de espírito, à espera do comboio, fiquei algum tempo sentado num banco da sala de espera, a ler a imprensa desportiva. Sentia-me felicíssimo só de pensar que me libertara da minha teoria. Disse para comigo que, ao longo da minha vida, tinha visto como caíam do ponto mais alto as crenças, modas e teorias literárias de que tivera notícia. E também pensei que, no fim de contas, soubera sempre que, se tivermos uma vida suficientemente longa, podemos ver muitas coisas, e o mesmo se podia dizer das expectativas. Crer numa só teoria seria sempre uma coisa totalmente suicida e, além do mais, ligeiramente estúpida, porque, para um tímido como eu, não podia existir nada tão irresponsável como pensar que era precisamente a nossa teoria válida.
Acabado de chegar à grande liberdade do espírito vago, disponível para tudo menos para outra teoria, subi, pouco depois do meio-dia, para o comboio que havia de me deixar em Barcelona. (...) Minutos depois, pela janela ficava literalmente extasiado a ver a paisagem (...). E, no meio do êxtase, só uma certeza; uma certeza como bálsamo secreto e último da minha condição de herói num conto intitulado La espera: a certeza de que a minha teoria de Lyon era idêntica à minha vida e à espera em que consistia essa vida e também à espera que habitava dentro dessa espera que, por sua vez, continha outra espera. Quer dizer que a minha teoria de Lyon não tinha sido mais do que uma acta lavrada com o único propósito de me libertar do seu conteúdo, talvez uma acta lavrada com o exclusivo propósito de escrever e perder países, de viajar e perder teorias, perdê-las todas."


Enrique Vila-Matas in, Perder Teorias

corresponde àquela parte de mim

© Marilyn Bridges, 1992



"A primeira vez que fui ao Brasil, perguntei por que não havia touradas, uma excepção em quase toda a América Latina onde elas despertam interesse e afición. Um amigo explicou-me: A coisa tentou-se mas o negócio não deu, não. (...) Não é que o Povo torcia pelo touro? Era. Aplaudia o touro e assobiava o toureiro. Aí os toureiros se desmoralizaram muito e a coisa não tinha condições.


Creio que o Brasil corresponde àquela parte de mim que também torce pelo touro, que homenageia a sua fúria solitária, a sua coragem desacompanhada, contra o jogo, a astúcia e as vantagens do homens."



António Alçada Baptista in, A pesca à linha - alguma memórias

19/11/12

o amor que lemos nos olhos

© Florian Henckel von Donnersmarck | As vidas dos outros, 2006


“(...) as pupilas dilatam-se e há amor no olhar. Não o amor que se sente pelo trabalho ou por uma amante ou não importa qual fogueira de paixão que a maioria de nós escolhe para dizer que ama. É o amor que lemos nos olhos das pessoas de idade casadas e felizes juntas há dezenas e dezenas de anos, ou naqueles crentes de tal maneira crentes ao ponto de dedicarem a sua existência à fé: um amor que se mede naquilo que custou, no que foi preciso renunciar por ele. Que tenha havido uma ‘escolha’ ou não deixa de ter importância… é precisamente a renúncia a si mesmo e ao poder de escolher que dá forma a esse amor.” David Foster Wallace inDF Wallace enquanto experiência religiosa por Rui Catalão

cinquenta e oito segundos



Chopin | Estudo em sol bemol maior, Op 25, nº 9


"Um dia, em conversa com alguns colegas da orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a possibilidade da composição de retratos musicais, retratos autênticos (...) lembrou-se de dizer que o seu retrato, no caso de existir de facto uma música, não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo, mas num brevíssimo estudo de Chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior. Quiseram saber porquê e ele respondeu que não conseguia ver-se a si mesmo em nada mais que tivesse sido escrito numa pauta e que essa lhe parecia ser a melhor das razões. E que em cinquenta e oito segundos Chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido. Durante alguns dias, como amável divertimento, os mais graciosos chamaram-lhe cinquenta e oito segundos (...)."

José Saramago in, As intermitências da morte

o tempo que resta...

© Elia Suleiman | O Tempo que resta, 2009


David Grossman: (...) De momento, identifico dois problemas principais: o primeiro é a nossa relação com os palestinianos que se encontra num impasse muito bizarro. Há a ilusão de que nada acontece; parece que os palestinianos estão, de certo modo, a colaborar com a ocupação israelita, mas não há diálogo entre nós e os palestinianos. Israel continua a expandir os colonatos nos territórios ocupados - ainda recentemente foi construída uma universidade [no colonato de Ariel], o que é perturbador. O segundo problema é a situação económica, que é também um mistério porque, por um lado, Israel tem uma economia que prospera e escapou à crise mundial, e, no entanto, há tantas pessoas em Israel que são pobres e não têm meios de sustento; e as pessoas não estão a ver a relação entre a pobreza e o gigantesco investimento que é feito na colonização dos territórios ocupados. Israel comporta-se como um lunático que, ignorando o perigo, caminha à beira de um telhado e aqui adormece, sem saber como vai despertar." 
in, jornal Público, 2012

18/11/12



Camané | Sempre de Mim, 2008

17/11/12

© Tiago Torres Campos | Um rio de nuvens, 2012



Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?

Nizar Kabbani




16/11/12

gratos por ele nos ter existido

© Georges Dussaud | Manuel António Pina



"Vamos todos sentir a falta dessa voz que cada manhã nos trazia a sua gaia ciência crítica, uma referência ética num tempo de ignomínias, assim como a indizível beleza do seu dizer, desse dizer em que, sempre 'por outras palavras' de que só ele tinha o segredo, o poeta cronista dizia o que as nossas palavras nunca alcançariam. Mas, até por isso mesmo, mais do que nos lamentarmos por ele ter partido, devemos estar gratos por ele nos ter existido." Sousa Dias in, Ípsilon, 16.11.2012

a solidão

© F.M. | 2012

"A solidão é-nos intrínseca. Existimos encerrados num corpo e muito do que sentimos é impartilhável. Nem que seja a dor. Existimos encerrados numa vida e muito do que vivemos é impartilhável. Nem que seja porque os outros tendem a afastar-se quando passamos por dificuldades. As dificuldades, tal como as doenças, confrontam-nos, de forma cruel, com a nossa condição de seres sós. Nessas alturas os outros acusam-nos ou apiedam-se. De uma maneira ou de outra estigmatizam-nos. Nessas alturas, os outros reflectem a nossa consciência da solidão, intensificam-na." Dulce Maria Cardoso