29/02/12

sem ver

© Richard Avedon | Samuel Beckett, 1979


«Cheirei então a terra, o cheiro da terra estava na erva, que as minhas mãos entrançavam sobre o rosto, de tal maneira que fiquei sem ver.» 

Samuel Beckett

28/02/12

tudo está certo


© J.B. | Grécia, 2011

"Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Ás vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim."

Cecilia Meireles


24/02/12

onde se fundem


Barcelona, 2009


a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.




Luís Miguel Nava

22/02/12

tudo

Nickolas & Sheila Pye

Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
o incessante alimento que percorre o meu corpo.

António Ramos Rosa

17/02/12

este poema é para ti


"Eternal Sunshine of the Spotless Mind" | Michel Gondry, 2004

"...eu persigo também o doce amor,
o terno amor para dormir ao lado
e que alegre a minha cama ao acordar,
próximo como um pássaro.

...
Nem há paixão de uma noite
que possa ser comparada
à paixão que dá o conhecimento,
aos anos de experiência
do nosso amor.
Porque no amor também
é importante o tempo..."

Jaime Gil de Biedma in, Qual É A Minha Língua Ou A Tua Língua - cem poemas de amor de outras línguas

16/02/12

a poesia

© Shunsuke Iwata

"La terre est bleue comme une orange"

Paul Eluard in, L'Amour la poésie | 1929

15/02/12

amar-te

© Tino Sehgal


Amar é perder-se no tempo,
ser espelho entre espelhos.
É idolatria...
Ao que é temporal chamar eterno...
Amar é despenhar-se
cair infindavelmente,
o nosso par
é o nosso abismo...
amar é duplo
e sempre dois
dois é querer continuar o mesmo
e já ser outro, e outra
amar é ter olhos nas pontas dos dedos
tocar no nó em que se enlaçam
quietude e movimento
A tarde foi a pique
lâmpadas e reflectores
devassam a noite
com palavras de água, chama, ar e terra
inventamos o jardim dos olhares
diante de nós
está o mundo.

Octavio Paz

14/02/12

eu e tu

© Tino Sehgal

"Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo."

José Luís Peixoto


10/02/12

falo de ti

© Maria | 2010

Porque tu és imagem
falo de ti verão como se fosses
uma fotografia ou o seu real


Gastão Cruz

09/02/12

era uma vez

© Floto & Warner

"Era uma vez um menino que tinha um defeito de pronúncia. Não era capaz de dizer tê: dizia quê. Trocava o tê pelo quê. Trocava o têpluquê. Em vez de dizer tasa, como toda a gente, dizia casa; em vez de dizer tão, dizia cão; em vez de dizer... tapete, dizia carpete (às vezes deixava uns tês para trás, deixava uns quês para crás). E assim por diante: em vez de dizer tábua, dizia cábula; em vez de dizer tu, dizia (rabo); em vez de dizer Tomé, dizia Comé; em vez de dizer taxímetro, dizia caxímetro, etc. (em vez de dizer etc., dizia ecc.). Esta história (em vez de dizer esta história, dizia esca escória) tem uma moral, é das que têm: é que todos os defeitos de pronúncia (como os outros defeitos todos, há uma história para cada defeito) têm também virtudes de pronúncia, senão eram defeitos perfeitos. Ao menino, como a toda a gente que tem defeitos de pronúncia, ENTARAMELAVA-SE-LHE a língua; este menino tinha sorte porque, como as letras do defeito dele eram o tê e o quê, a língua ENCARAMELAVA-SE-LHE e o menino gostava muito (goscava muico)."

Manuel António Pina

08/02/12

o teu sorriso

© Maria | 2010

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

Manuel António Pina in, Um Sítio Onde Pousar a Cabeça, 1991

07/02/12

sinto tanto a tua falta


07.2.1935 - 09.5.2010


"Sinto tanta falta das tuas palavras.

O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais."

José Luís Peixoto in, Morreste-me





03/02/12

há dias

© Sergei Grits | Minsk, 2012

Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto...

Tomas Tranströmer

02/02/12

prefiro

© Andrzej Banaś | Wislawa Szymborska 1923 - 2012


Prefiro cinema.
Prefiro gatos.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os escrever.

No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países consquistadores.
Prefiro ter objecções.

Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
a outras tantas não mencionadas aqui.

Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do Ser Ter a sua razão.

Wislawa Szymborska in, Rosa do Mundo

num só dia

© Sergei Supinsky | Kiev, 2012

vi verão e inverno num só dia,
atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,
os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu
coração seco.

Hans Magnus Enzensberger

01/02/12

do inverno

© Abbas Kiarostami | Untitled from the series "Snow White" | 1978-2004


animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.

António Franco Alexandre