31/08/12

ao silêncio

 © Jean-Luc Godard | Le Mépris, 1963
Casa Malaparte, Itália | Arq. Adalberto Libera, 1937




diante do mar

antevejo as planícies místicas de outubro,
quando o vento trás o travo das gaivotas
à boca semeada das papoilas da primavera

é verdade, há um caminho secreto que conduz,
através dos verdes campos de maio,
à casa que, regada do incêndio do verão
mostra em outubro que, depois da bucólica infância
das imagens, vem sempre o espaço do poema:


o olhar que distende o movimento da mão conduz
à casa a casa a casa a casa
a conciliação dos trabalhos da mão
com o perfume do silêncio


então, antevejo:
o poema é a mão que corrige o olho,
que antecipa a eternidade

sou o caminho dessa mão
que antevê o cálculo
do marinheiro que manobra
o astrolábio da canção

essa mão é todo o corpo do poema

a mão que distende o travo das manhãs pela paisagem
e mantém sempre todo o silêncio junto ao peito,

a mão que escreve as marés as marés as marés
e trás a lua a lua a lua para o olho,
e trás a lua condenada pela carne e pelo sal
à degustação das parábolas


entretanto,
o gosto progride, como um segredo

a mão promove uma lenta infância que se alarga,
um caminho através do poema, que
não teme a derrocada das casas, que
promove o anseio salubre que
as planícies infundem no rosto da criança
adormecida

sabe-se que
diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio

Luís Felício


30/08/12

é pouco

© Lucien Clergue
Nu a Soho | Nova Iorque, 1980
"Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras"

Luís Miguel Nava


perdemos a voz


© Lucien Clergue
Jean Cocteau croise l'homme-cheval, 1959



"Que o homem é tão estranho na sua existência,
Tão raro no seu fado, tão obscuro na sua origem,
Que ante coisas tão simples perdemos a voz.
Tão ridículo, tão bizarro, tão real, irreal..."

Alexander Search

a beleza


© Lucien Clergue
Palazzo Brandolini | Veneza, 1979


"Utilizei a máquina polaroid duas noites. Fotografei o corpo todo nu, de frente, de costas, pormenores de certas partes, os membros em toda a espécie de posições, dobrados, estendidos, sob diversos ângulos. Para que fiz estas fotografias? Em primeiro lugar, porque tenho prazer em tirá-las. É para mim uma alegria mover à minha vontade um corpo de uma mulher adormecida (ou que finge que dorme) para a pôr em diversas posições. Em segundo lugar, é para colar estas fotografias no meu diário. Deste modo, minha mulher vê-las-á certamente. Assim descobrirá a beleza de partes do seu corpo às quais não prestava atenção até agora, e ficará surpreendida com isso. Uma terceira razão, é porque deste modo minha mulher compreenderá o prazer que sinto ao contemplar o seu corpo nu; concordará comigo, e ficará profundamente sensibilizada. (Fará bem em reflectir neste facto muito raro: um marido que vai fazer 56 anos este ano e que está seduzido desta maneira pelo corpo nu de sua mulher de quarenta e cinco anos!)." 

Junichiro Tanizaki in, A Confissão Impudica

29/08/12

E depois, um dia...



História trágica Com Final Feliz
Era uma vez uma menina cujo coração batia mais rápido que o das outras pessoas.
Isso incomodava toda a gente.
Por causa do barulho.
O coração batia tão alto!...
Ela tentava explicar:
«É um coração de pássaro... Eu estou no corpo errado!... Daí o coração bater tão rápido... Eu sou um pássaro...»
«Que é que ela disse?... é tolinha... não deve durar muito…»
Então, ela fugia...
Ela só queria desaparecer, deixar-se levar pelo vento...
Finalmente, a chuva acalmava-a, então ela voltava p’ra casa e continuava a viver, apesar de tudo.
Pouco a pouco as pessoas foram-se habituando ao barulho do coração…
Acabaram mesmo por esquecê-la.
Ninguém se apercebeu do que se passava.
E isso era bom para ela.
Também ela se habituava.
Começou mesmo a gostar do seu corpo…
E sentia-se cada vez mais leve…
Ninguém reparou como sorria, de olhos postos no céu.
E depois, um dia…
As pessoas já não sabiam se era alguém que morria, ou alguém que nascia.
Mas uma coisa era certa, ninguém se importaria de partir assim.

Regina Pessoa

28/08/12

puro movimento

© Wim Wenders | Wings of Desire, 1987

"pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano"

Luís Felício


27/08/12

um homem

© Duane Michals | The Fallen Angel, 1968


«O padre da minha terra, quando eu era neno, chamava-me meio anjo, meio homem grande», disse Benito no seu português aproximado.


«Deixa lá o anjo», disse ela.


Fernando Assis Pacheco in, Trabalhos e paixões de Benito Prada - galego da província de Ourense que veio a Portugal ganhar a vida

24/08/12

os dois


© Dennis Stock


"os dois fugidos do mundo."

Dulce Maria Cardoso in, Até nós

23/08/12

a memória

"Aquilo que me lembro (num presente que me parece também já passado) está cheio de estranhezas e improbabilidades mas igualmente de vazios, de hesitações e de imprecisões, pois se calhar não me recordo de factos mas da minha recordação deles.
(...)
A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, a memória." 


Manuel António Pina in, Os papéis de K


22/08/12

keep smiling

 © Garry Winogrand

© Garry Winogrand
© Garry Winogrand


"Remember to keep smiling when shooting on the streets."
Eric Kim

para sempre

© Maria | Baiona - Galicia, 2010
Ilhas Cíes - Parque Nacional Marítimo -Terrestre das Ilhas Atlânticas

"Ela espalhada pelo quarto, alongando-se nos preparativos da viagem que vão fazer. Não irão longe nem por muito tempo, mas ela quer lembrar-se para sempre de tudo o que esta viagem lhe trará. Por isso se demora. Parte-se tanto, viaja-se tão pouco." 

Dulce Maria Cardoso, in Até nós

21/08/12

este azul

© Maria | Verão, 2012

"Este azul que nos cerca"
Dulce Maria Cardoso

20/08/12

Ontem foi assim.


"Durante quatro dias, fomos todos cem-soldenses. Uma condição bonita. Tão bonita quanto intenso foi ver Aldina Duarte a oferecer-nos um dos momentos maiores, altíssimo, do festival.


No palco Giacometti, uma mulher com uma voz sabedora da vida que as palavras têm, totalmente concentrada nelas enquanto o olhar se perdia no horizonte, que era céu, casario e gente sentada e aglomerada naquele pequeno largo de Cem Soldos, cantou tudo o que o fado tem para cantar. Aldina Duarte foi mais do que tocante, foi música viva, tradição no sentido mais nobre do termo: como aquilo que temos de definidor, de mais importante. E, por isso, foi também festa: houve palmas e gente a dançar e o homem da guitarra, esse grande guitarrista chamado Paulo Parreira, sorriu com condescendente bonomia ao sacrilégio – a dança e as palmas eram, na verdade, uma manifestação de apreço, o mesmo do que o que o público lhe dedicou quando, superiormente acompanhado da viola e do baixo, se lançou numa guitarrada em crescendo que deixou o público de queixo caído e Aldina de sorriso aberto enquanto observava os três músicos.

Em “Contos de Fados”, álbum de 2011, a fadista cantou obras da literatura de todos os tempos adaptadas à métrica e à personalidade do fado, forma maior de lhe provar a universalidade. Foi aquilo a que assistimos em Cem Soldos. O divertido “Gato escaldado” em encore, desilusão de amor vencida por mulher de força; aquele “se cantar bastasse, ai meu amor se bastasse” e saber que não basta certamente, mas que liberta e exorciza; e, claro, o próprio “Contos de fados” que resume muito melhor e em poucos versos tudo o que escrevemos acima: “E se os contos são cantados / Se a rima for bem escolhida / Já não são contos, são fados / Já não são fados, são vida.”

Com Aldina Duarte, tivemos o momento superlativo da despedida do [festival] Bons Sons."

Mário Lopes in, jornal Público | 20.08.2012

17/08/12

ainda o prazer da leitura


"E a ideia de ausência de perturbação recorda-me novamente a minha leitura de viagem, o fascículo cor de laranja que, apenas parte de um todo extenso, repousa ao meu lado.

Leitura de viagem - uma designação genérica repleta de conotações de inferioridade. Encontra-se largamente divulgada a opinião de que o que se lê em viagens tem de ser do mais leve e superficial, balelas que ajudam a «passar o tempo». Eu nunca entendi semelhante atitude. É que, à parte o facto de a chamada literatura de entretenimento ser sem dúvida a mais aborrecida do mundo, não consigo descortinar por que motivo uma pessoa, logo numa ocasião solene e séria como a que representa uma viagem, deverá descer abaixo dos seus hábitos intelectuais e passar a satisfazer-se com futilidades. Será que a situação de vida enlevada e tensa das viagens provoca um estado de alma e de nervos em que as futilidades causam menos repulsa que a habitual?"

Thomas Mann
in, Viagem Marítima com Dom Quixote

14/08/12

como naquela noite

Abel Ferrara | 4:44: Last Day on Earth, 2012

"os dois fugidos do mundo. Ela toca na pérola. Ao de leve. Como naquela noite. As mãos dele soltas pelo corpo dela. Os lábios em segredos não foram guardados. Os corpos deles despidos sobre a cama. Apenas o presente dele no dedo dela. O redondo denso dos momentos eternos." Dulce Maria Cardoso, in Até nós

10/08/12

o instante

© Stephen ShoreGinger Shore, Florida,  1977


"Não sei se prefiro
A beleza das inflexões
Ou a das insinuações,
O assobio do melro
Ou o instante depois."

Wallace Stevens

09/08/12

e depois nada

© Yuki Aoyama | "Petrified Red Flower at steps outside Benzaiten Shrine on Enoshima"


"Uma sombra imensa alonga-se por cima das arcadas;
uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto
ninguém caminhou -
e depois nada; e subitamente um ramo quebrado
pelo peso ligeiro do céu."

Yannis Ritsos

qualquer coisa assim

© Chris Marker | La jetée, 1962

"qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo"

Mário Cesariny

08/08/12

uma fotografia


Solene saudação a uma fotografia

onde há não muito ainda e no entanto há tanto

tempo colaborámos por exemplo na exaltação do verão
e afrontámos a morte implícita no tempo

Ruy Belo

© Claude Nori

"...e depois pedi-lhe com os olhos para pedir outra vez sim e depois ele pediu-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro pus os braços à volta dele sim e puxei-o para baixo de mim para que pudesse sentir os meus seios todos perfume sim e o coração batia-lhe como louco e sim eu disse sim eu quero Sim."

James Joyce, in Ulisses

summer's day

© JB | Nazaré, verão 2012


Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate...

 William Shakespeare

07/08/12

da beleza




Antony and the Johnsons | Cut the World, 2012

[This video may not be suitable for all audiences]


"Que beleza   Por um minuto
a morte..."

Raymond Carver

da fragilidade

© Francesca Woodman
[1958-1981]


A única forma verdadeira de resistência é a exposição radical da fragilidade."

José Tolentino de Mendonça

06/08/12

esta espécie de beleza

© F.M. | Valado dos Frades, 2012


Gosto muito "dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal...
a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante...
essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel."

Rui Pires Cabral


03/08/12

e tu

© Maria
Chao Phraya River -
Chakrabongse House |  Bangkok, 2011


"convoco as mais belas coisas, e tu entre elas"

António Franco Alexandre

para salvar um coração


© JB | Grécia, 2011


"Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica o caminho para o regresso
que nunca há


o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travamos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendiamos
do riso mais inocente
ou de um amor
Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos
Estamos sós com a noite
para salvar um coração."

José Tolentino de Mendonça, in A direcção do sangue

[obrigada Dina e Ana]


Acrescento: "Por fim, talvez precisemos compreender que no curso do nosso caminho, colectivo e pessoal, as crises «nos acontecem para que seja evitado o pior». E o que é o pior? [Christiane] Singer escreve: «O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem naufrágios, é ter ficado apenas à superfície das coisas, ter dançado um baile de sombras, ter ficado a chapinhar no pântano do "diz que diz", das aparências» e nunca ter habitado uma vida que lhe pertencesse." José Tolentino Mendonça

Sem mais explicações

© Ingmar Bergman | The Seven Seal, 1957


"Boas noites, senhor primeiro-ministro, Boas noites, eminência. Telefono-lhe para lhe dizer que me sinto profundamente chocado, Também eu, eminência, a situação é muito grave, a mais grave de quantas o país teve de viver até hoje, Não se trata disso, De que se trata então, eminência, É a todos os aspectos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja, Ó diabo, Não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor, Estava calado, eminência, provavelmente terá sido alguma interferência causada pela electricidade atmosférica, pela estática, ou mesmo por um problema de cobertura, o satélite às vezes falha (...) Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-ministro, Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, O estado tentará sobreviver, ainda que eu duvide de que o venha a conseguir, mas a igreja, A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra coisa que contradizer a realidade, e aqui estamos, Que irá dizer o papa, Se eu fosse, perdoe-me deus a estulta vaidade de pensar-me tal, mandaria pôr imediatamente em circulação uma nova tese, a da morte adiada, Sem mais explicações, à igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso, Boas noites, eminiência, até amanhã, Se deus quiser, senhor primeiro-ministro, sempre se deus quiser, Tal como estão as coisas neste momento, não parece que ele o possa evitar (...)"

José Saramago, in As intermitências da morte

02/08/12

eu estive aqui.

© Maria | Verão, 2012

"Um avião risca o céu a direito. Silencioso. Como um giz preguiçoso nas mãos invisíveis de deus. Noutro tempo ter-lhe-ia respondido daqui de baixo. Talvez ainda responda. Noutro tempo ter-lhe-ia escrito, talvez ainda escreva, em letras bem grandes a todo o comprimento do terraço para que não possa deixar de ver-me, eu estive aqui.

Eu estive aqui."

Dulce Maria Cardoso, in o retorno

F.E.E.L.I.N.G.C.A.L.L.E.D.L.O.V.E.

01/08/12

amo-te amo-te muito


"é justo fazer-se uma correcção: Assis Pacheco nasceu nesse 29 de Agosto de 1956, não na data apontada no primeiro capítulo. Já andava neste mundo desde Fevereiro de 1937, mas foi nesse dia que conheceu o amor de uma vida, figura central na sua biografia que se torna impossível imaginá-la sem ela. A biografia de um homem que, em cada instante, fez questão de clarificar a importância desse afecto. «Amo-te amo-te muito / e acabo aqui.», escreveu em Memórias do Contencioso, de 1980."

Nuno Costa Santos, inTrabalhos e paixões de fernando assis pacheco