21/03/13

Teatro Maria Matos


"Esta peça começou a formar-se após uma série de visitas que fiz a um amigo da minha geração, que estava internado no Hospital de Oncologia, em Lisboa. O processo de incapacitação do seu corpo fê-lo regredir até ficar com a aparência de um bebé. Essa imagem completou-se na última vez em que o vi. Usava apenas uma fralda.

Erguida quando eu era ainda uma criança, a Av. dos Bons Amigos tornou-se na principal artéria da vila onde os meus pais vivem desde a infância, e onde eu nasci e cresci. Essa vila tornou-se entretanto num dos dormitórios mais assustadores nos subúrbios de Lisboa e na décima maior cidade do país.

Em Av. dos Bons Amigos, convido os espectadores dispostos em semi-círculo a experimentarem “uma hora psicológica” sem recorrerem ao relógio – será um tempo ligeiro, nem rápido, nem saturante. Fácil de suportar e difícil de digerir.

Através de anedotas, memórias pessoais, e da história recente do país, incorro numa excursão a temas que nos são comuns, mas que nos habituámos a esconder: o isolamento, as inibições a que sujeitamos o corpo, a vergonha daquilo que nos menoriza perante o que identificamos como normalidade, a relação de medo com o desconhecido. Dor, doença e pânico da morte. A dificuldade em assumir a relevância pública dos nossos pavores privados.

Com Av. dos Bons Amigos dou continuidade a uma série de “solos acompanhados” que iniciei em 2010, com Dentro das palavras, em que exploro a autobiografia e a memória como ferramentas para construir ficções em redor dessa noção tão elementar sobre o que é preciso passar até sermos crescidos. É o equivalente cénico ao que na literatura se chama Bildungsroman (romance de formação).

O termo “solo acompanhado” designa a relação com os espectadores. São eles os meus interlocutores. Condicionam o meu discurso, a razão de contar determinada história, assim como o modo de transmiti-la. Como um público é feito de individualidades, trata-se de adequar o estado de espírito que se instala. O ambiente pode oscilar entre um serão animado por um contador de histórias e uma sessão de agitação política (duas formas antiquadas de passar o tempo).

Com Av. dos Bons Amigos pretendo convocar o espetador para um espaço intermédio entre o que é público e o que é privado, e aí trilhar um caminho diferente para o sentido de pertença e de responsabilidade coletiva."

Rui Catalão

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