24/04/14

Onde estava você no 25 de Abril?

© Alfredo Cunha | 25 de Abril de 1974


«Onde estava você no 25 de Abril?» Na verdade, ninguém pode dizer onde estava no 25 de Abril. Porque estivemos todos num sítio indizível e indiscernível, algures fora de nós (ou talvez dentro de nós).
Uma manhã despertámos e o sonho (para alguns o pesadelo...) era do lado de cá. As coisas, os rostos, as ruas, os nomes, pareciam todos os mesmos, mas algo fundamental tinha mudado radicalmente à nossa volta, sem compreendermos bem o quê. Tentámos cegamente ver no meio de tanta súbita luz com os olhos cheios ainda de escuridão, e muitos dos acidentes (de percurso e de discurso) desses dias tiveram por causa desse deslumbramento encadeamento. Imagine-se o que é, de repente, ao fim de 48 anos de sisudez, (...). Tínhamos adormecido num país e acordado (se, de facto, acordáramos) noutro, próximo e espantoso, uma espécie de heterónimo onde até nós nos parecíamos estranhos, um mundo, ou algo como um mundo, "indiscutível e inexplicado / sem saber-viver mas cheio de alegria de viver / sóbrio e embriagado / nocturno e diurno / sólito e insólito / e belo como tudo" como Prévert disse da lanterna mágica de Picasso.
A língua alemã tem uma palavra para essa sensação ao mesmo tempo de reconhecimento e de estranheza (de "estranhidão", se houvesse tal palavra), unheimlich; e o inglês tem eery, ou weird. O português que falávamos (...) não tinha palavras para isso, e a única que érmos capazes de pronunciar, e onde julgávamos que cabia então tudo, era «liberdade». Por isso a gritámos na rua, sem sabermos o que dizíamos. E o nosso coração corria desabaladamente, tropeçando, à frente da nossa razão, completamente aturdida no meio de uma formidável overdose de contraditória e convulsa realidade. Quem se surpreenderá que, durante esse dia absoluto, não soubéssemos onde estávamos nem quem éramos e flutuássemos, náufragos perdidos e felizes, meio metro acima da existência?

Manuel António Pina, in Por outras palavras & mais crónicas de jornal

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