"Não sei se já viram o Júlio Resende a tocar, magrinho,
de sorriso fácil, parece cheio de dedinhos a correr as teclas. Um rapaz cheio
de dedinhos a tocar piano. Temos a sensação de que cai uma chuva inteligente
nas teclas, vinda de todo o lado, à tangente de si mesma, organizando o som. O
som segundo a mais bonita intuição, como se ele fosse escutado da natureza.
Eu ia aprender piano aos 17 anos, mas o Casio custava uns 12 contos e não havia dinheiro para essas coisas. Ainda desenhei um teclado em folhas de papel para treinar surdamente a coreografia circense dos acordes. Contudo, não resisti à falta de som.
Punha os discos do Michael Nyman a tocar, houve uma época em
que o ouvi muito, e achava que teria sempre tempo para aprender. Não contava
com a precariedade dos ossos, a lentificação de todo o corpo e a grande falta
de paciência. Hoje, torto dos dedos, não os consigo educar para a música. Tenho
os dedos burros do ritmo, cansados. Compenso a frustração escutando. Ando cada
vez mais apurado. Ouço bem como os melhores coscuvilheiros.
O Júlio Resende, que vi a acompanhar a Aldina Duarte nas Quintas de Leitura, tem uma graça particular. Sentimos como a sua natureza tem que ver com aquilo, como se tem feliz enquanto toca, como a música se torna mais delicada, sensível, humana. Sempre me maravilhou a capacidade de génio dos outros. Gosto que as pessoas sejam capazes da maravilha. Fico comovido com essa excepcional forma de existir. Pasmo.
Tenho ouvido o seu belíssimo disco, You taste like a song, acompanhado do seu
trio, entretanto, a minha amiga saiu de coma, recuperou a memória, está como eu
a queria, forte e carregada de personalidade como sempre. Já pude sorrir.
Sorrimos todos, os assustados. Passou o grande susto e ouço o piano do Júlio
Resende como a Primavera a chegar durante o Fevereiro frio que passa. Da
varanda alta da minha casa, o vento uivando como feroz, eu vejo cada coisa na
sua invernia através do piano. Deixa-me feliz. Há algo que me deixa feliz.
Compreendo bem que a arte foi inventada para isso. Para lidar com o nosso
mesmismo e nos fazer sentir num instante de pura elevação. Carregando mágoas e
melancolias, nunca apagando quem somos, com tudo isso, sentimos uma especial
felicidade. Alguém nos ofereceu uma expressão do seu lado mais precioso. Se
abrisse a porta grande da varanda, talvez até o vento se calasse para ouvir.
Para ouvir o Júlio Resende tocar." Valter Hugo Mãe
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