14/02/13





"Não sei se já viram o Júlio Resende a tocar, magrinho, de sorriso fácil, parece cheio de dedinhos a correr as teclas. Um rapaz cheio de dedinhos a tocar piano. Temos a sensação de que cai uma chuva inteligente nas teclas, vinda de todo o lado, à tangente de si mesma, organizando o som. O som segundo a mais bonita intuição, como se ele fosse escutado da natureza.

Eu ia aprender piano aos 17 anos, mas o Casio custava uns 12 contos e não havia dinheiro para essas coisas. Ainda desenhei um teclado em folhas de papel para treinar surdamente a coreografia circense dos acordes. Contudo, não resisti à falta de som.
Punha os discos do Michael Nyman a tocar, houve uma época em que o ouvi muito, e achava que teria sempre tempo para aprender. Não contava com a precariedade dos ossos, a lentificação de todo o corpo e a grande falta de paciência. Hoje, torto dos dedos, não os consigo educar para a música. Tenho os dedos burros do ritmo, cansados. Compenso a frustração escutando. Ando cada vez mais apurado. Ouço bem como os melhores coscuvilheiros.

O Júlio Resende, que vi a acompanhar a Aldina Duarte nas Quintas de Leitura, tem uma graça particular. Sentimos como a sua natureza tem que ver com aquilo, como se tem feliz enquanto toca, como a música se torna mais delicada, sensível, humana. Sempre me maravilhou a capacidade de génio dos outros. Gosto que as pessoas sejam capazes da maravilha. Fico comovido com essa excepcional forma de existir. Pasmo.

Tenho ouvido o seu belíssimo disco, You taste like a song, acompanhado do seu trio, entretanto, a minha amiga saiu de coma, recuperou a memória, está como eu a queria, forte e carregada de personalidade como sempre. Já pude sorrir. Sorrimos todos, os assustados. Passou o grande susto e ouço o piano do Júlio Resende como a Primavera a chegar durante o Fevereiro frio que passa. Da varanda alta da minha casa, o vento uivando como feroz, eu vejo cada coisa na sua invernia através do piano. Deixa-me feliz. Há algo que me deixa feliz. Compreendo bem que a arte foi inventada para isso. Para lidar com o nosso mesmismo e nos fazer sentir num instante de pura elevação. Carregando mágoas e melancolias, nunca apagando quem somos, com tudo isso, sentimos uma especial felicidade. Alguém nos ofereceu uma expressão do seu lado mais precioso. Se abrisse a porta grande da varanda, talvez até o vento se calasse para ouvir. Para ouvir o Júlio Resende tocar." Valter Hugo Mãe

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