04/01/13

de todo o coração


© Adriano Miranda | Manuel António Pina


Não de todo o coração


Deixem-me parafrasear Beethoven: a bondade é a única forma de superioridade (não gosto da palavra, mas é a que usa Beethoven). A primeira vez que ouvi isto - e ouvi-o como se ouvem coisas que sempre soubemos mas não sabíamos que sabíamos -, perguntei-me se conheceria alguma boa pessoa. E conheço. Pelo menos, três ou quatro (sou um privilegiado).
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Há quase 50 anos, num jornal que agora é apenas nebulosamente memória, com o belíssimo nome de O fala barato e editado na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno com textos de crianças (...), um miúdo de 12 anos, o Ferraz, escrevia: «Eu quero ser bom, / mas não de todo o meu coração.» Porque a bondade é intolerante, é uma fortaleza contra os maus.
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Por outro lado, a bondade, como a beleza e como a justiça, pode ser terrivelmente destruidora, a bondade pode ser má. (...) Ferraz não lera decerto Dostoievski, mas aprendera, no confuso lugar da sua jovem vida, e à própria custa, que a bondade não é inocente e é necessário ser bom «mas não de todo o coração»: «Se eu for bom / andaria sempre alegre / dava sempre o que tivesse / a esses rapazes que mo não agradeciam / isso para mim era como se me calcassem».
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Em tempos participei na Feira do Livro do Porto num debate subordinado ao tema «Devem os escritores ser boas pessoas?». Na altura acreditava que um escritor deve ser apenas bom escritor, hoje hesito. Já uma vez escrevi: precisamos mais de boas pessoas («não de todo o coração») do que de bons escritores. Bons escritores há muitos, sou capaz de enumerar de cabeça uma ou duas centenas deles. Boas pessoas não, e bons escritores boas pessoas menos ainda (eu é que sei!).


Manuel António Pina, in Por outras palavras

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