19/12/12

chama-se vida

© Joana Dilão | Cão Solteiro e Vasco Araújo: A Africana, 2012



B: Vocês aborrecem-me. Este sítio aborrece-me. Preciso de um estrangeiro a olhar para mim. Para saber que o mundo é mais do que aquilo que vemos. Preciso da estranheza para viver.
C: Foste enganada pelo discurso da diferença. São só palavras. Iguais às nossas. Que se repetem. Ele não existe. Ele não te ama. Não percebe a tua língua. Vai matar-te.
B: Já conheço o meu futuro. Sei muito bem como a história acaba. Ando nisto há muito tempo. Deixa-me aproveitar os últimos tempos. A minha doença é mortal. Chama-se vida. Vai num estado avançado. E é uma pirosada. Cheia de frases feitas. Mas estou cá para isso. Ganhei o desinteresse.
C: Perdeste o interesse.
B: Mas quem é que tu pensas que és? Quem és tu para me dizeres o que é interessante? Quem és tu para dizer quem sou eu, quando nem eu sei quem sou? Eu sou uma branca a fazer de uma preta a fazer de um preto a fazer de um branco. Onde é que tu vives?! Como é possível teres tantas certezas?
C: Porque defini bem o meu mundo. E o meu mundo não é infinito. Nem sequer é redondo. O meu mundo é quadrado.
B: Como tu."


José Vieira Mendes a partir da ópera A Africana de Giacomo Meyerbeer

Direcção Musical: Nicholas McNair | Coro Gulbenkian | Co-produção: Cão Solteiro, Maria Matos Teatro Municipal e Fundação Calouste Gulbenkian

2 comentários:

  1. "Escrevo estas linhas. Parece impossível
    Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
    O facto é que esta vida é uma quinta
    Onde se aborrece uma alma sensível."

    [Álvaro de Campos]

    Triste de quem precisa de pessoas a olhar para si e a vislumbrar a ilusão que ele tem de si mesmo.
    Beijo-te,

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    1. "Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de urna forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão." Stig Dagerman, in
      A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

      Beijo-te,

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