11/03/11

uma síntese disto tudo



© Maria | Agosto, 2009



é porque existe o desejo, o olfacto, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
- os que nos vão sobrevive no tempo -
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhámos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.


Gonçalo M. Tavares












4 comentários:

  1. Arriscar tem a ver com confiança. Uma pessoa sem confiança vai tentar repetir, fazer igual aos outros, não cometer erros, que é uma ideia muito valorizada. Mas o erro está ligado à descoberta. É fundamental não ter medo nenhum do erro. O que é o erro? Eu tinha previsto ir numa determinada direcção e não fui, errei. O erro é encontrar alguma coisa, algo que se cruza com o novo, o criativo.

    [Gonçalo M. Tavares]

    Eu arrisquei.
    Confio em ti.

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  2. "Era para ter morrido e afinal renasci."

    Tiziano Terzani

    Acontece-me todos os dias isto mesmo.
    Contigo,

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  3. Anónimo19:50

    Linda poesia. Maravilhoso espaço literário.
    Abraço.

    Cristina.

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    1. Agradeço o elogio, Cristina.
      O mérito é do Gonçalo M. Tavares e estas palavras, e muitas outras, podem ser lidas no seu livro "A colher de Samuel Beckett e outros textos" editado pela Campo das Letras em 2002.

      E obrigada pela visita.

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