14/12/12

mas é na pele que tudo se reflecte

© Michael Powell | The Edge of the World, 1937


"Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual - completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia." 

Luís Miguel Nava, in Poesia Completa 1979-1994

Sem comentários:

Enviar um comentário