07/03/13



Gonçalo M. Tavares parece fugido de um romance de [Raymond] Queneau. «É verdade. Foi de lá que fugi», dir-me-ia ele agora se pudesse saber o que estou a pensar. De certeza que ficaria delirante se soubesse que o imagino acabado de sair de umas páginas de Queneau. Tenho-o ao meu lado e, por muito real e bom amigo que seja, não consigo evitar que me recorde um homem desenhado. E creio que, se tivéssemos aqui absinto, até essa bebida também pareceria desenhada.
Tavares, jovem talento português, está a apresentar o sei livro O senhor Brecht aos jornalistas em Barcelona. Ao lado dele, tomo notas para o meu diário. Ouço-o falar de uma das suas personagens, desse homem tão bem desenhado que é o senhor Henri, que tem uma notável apetência pelo absinto e é um dos habitantes desse bairro de artistas que, livro atrás de livro, Tavares vai criando como se estivesse sempre em permanente voo imaginativo: um bairro portátil, uma espécie de Chiado literário onde compram pão e tomam aperitivo uma série de senhores curiosos, cada habitante de um livro breve e próprio: o senhor Juarroz, o senhor Calvino, o senhor Valéry, o senhor Brecht, o senhor Kraus. Não sei se serão 99 os senhores que acabarão por viver no bairro, no entanto sei, por exemplo, que o senhor Henri - amigo pessoal de Ícaro, tanto como eu sou amigo de Tavares - disse outro dia:
- Se um homem mistura absinto e realidade, obtém uma realidade melhor.
Claro que o senhor Henri - como Tavares, Ícaro e Queneau - ultimamente pede absinto «sem uma única gota de realidade, por favor». O senhor Henri considera que o absinto é o infinito.
- Outro infinito, por favor.

Enrique Vila-Matas, in Diário Volúvel

2 comentários:

  1. Que belas e maravilhosas surpresas. Com a Maria é sempre assim.
    "- Outro infinito, por favor."

    Beijo-te,

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