10/05/11

Morrer gregamente



li algures que os gregos antigos...
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?

quando alguém morre também quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?


os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda á pergunta grega,
pode manter-se a paixão como fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?

Herberto Helder, in A Faca Não Corta O Fogo
 

2 comentários:

  1. O que é a vida senão um toque de passagem sobre o mundo; uma pegada nas praias terrestres que a próxima onda irá apagar; uma marca de algo que passou; uma sombra numa parede que se afasta ao olhar a substância; uma gota de uma nuvem a cair numa pedra, numa folha. São alguns momentos que valem uma eternidade.

    Abraço-te,

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  2. "É certo ser estranho não mais habitar a terra,
    não mais agir conforme o mal que acabáramos de aprender,
    não mais dar às rosas, e a todas a outras coisas identicamente promissoras
    o significado do humano futuro;
    não mais ser o que se tinha sido
    ...
    É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
    passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
    tudo o que antes tinha unidade. Estar morto
    é laborioso e cheio de recomeços, até que aos poucos
    nos apercebamos da eternidade..."

    Rainer Maria Rilke

    Abraço-te sempre,

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