© Adriano Miranda | Manuel António Pina
Não de todo o coração
Deixem-me parafrasear Beethoven: a bondade é a única
forma de superioridade (não gosto da palavra, mas é a que usa Beethoven).
A primeira vez que ouvi isto - e ouvi-o como se ouvem coisas que sempre
soubemos mas não sabíamos que sabíamos -, perguntei-me se conheceria alguma boa
pessoa. E conheço. Pelo menos, três ou quatro (sou um privilegiado).
(...)
Há quase 50 anos, num jornal que agora é apenas
nebulosamente memória, com o belíssimo nome de O fala barato e editado na
Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno com textos de crianças (...), um
miúdo de 12 anos, o Ferraz, escrevia: «Eu quero ser bom, / mas não de
todo o meu coração.» Porque a bondade é intolerante, é uma fortaleza
contra os maus.
(...)
Por outro lado, a bondade, como a beleza e como a
justiça, pode ser terrivelmente destruidora, a bondade pode ser má. (...)
Ferraz não lera decerto Dostoievski, mas aprendera, no confuso lugar da sua
jovem vida, e à própria custa, que a bondade não é inocente e é necessário ser
bom «mas não de todo o coração»: «Se eu for bom / andaria sempre alegre
/ dava sempre o que tivesse / a esses rapazes que mo não agradeciam / isso para
mim era como se me calcassem».
(...)
Em tempos participei na Feira do Livro do Porto num
debate subordinado ao tema «Devem os escritores ser boas pessoas?». Na altura
acreditava que um escritor deve ser apenas bom escritor, hoje hesito. Já uma
vez escrevi: precisamos mais de boas pessoas («não de todo o coração»)
do que de bons escritores. Bons escritores há muitos, sou capaz de enumerar de
cabeça uma ou duas centenas deles. Boas pessoas não, e bons escritores boas
pessoas menos ainda (eu é que sei!).
Manuel António Pina, in Por outras palavras
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