© Michael Powell | The Edge of the World, 1937
"Assim é a
memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o
que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me
sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que
escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de
aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num
prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda,
o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse
nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com
mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona
com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a
qual - completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a
que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a
memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm
dar à praia."
Luís Miguel Nava, in Poesia Completa 1979-1994
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