© Wang Qingsong, Follow Him, 2010
"afoguem professores e autores e teóricos e simpatizantes de
gramática, antes que não reste um único ser humano a conseguir
entender-se nesta língua que eu aprendi na rua e nos livros (mas não nos
livros de gramática)
segue-se um texto de teolinda
gersão, a partir dos problemas enfrentados pelos seus netos, em nome dos
quais ela escreve." Rui Catalão
«Vou chumbar a Língua
Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta
que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A
professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não
se aguenta. Por exemplo, isto: no ano passado, quando se dizia “ele está
em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o
predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o
predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”.
Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica
dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo
do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No
ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar
etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o
desgraçado de um “complemento oblíquo”.
Julgávamos que era
o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está.
Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um
complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo
verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao
mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de
evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um
verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários
pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos,
psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e
relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o
determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as
locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas.
Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: algumas árvores
secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão
temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se
disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa.
Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é
de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A
rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela”
era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que
continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no
espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano
passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram
tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a
gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou
desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice.
Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em
português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar
até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho
demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e
deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico,
classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia,
hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e
deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto,
hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas
textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de
decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por
palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes
palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem
para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a
começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas
eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases
cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem
querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo:
haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros
desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser
por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não
suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até
se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de
jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o
que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes,
mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As
redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e
um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me
apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E
pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve
redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa
nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos.
A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que
se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil,
como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos
não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a
entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E
agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a
setôra me perguntar: “Ó João, onde está a tua gramática?” Respondo:
“Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do
sujeito.” »
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