[fotógrafo desconhecido in, Cultura Inquieta]
li algures que os gregos antigos... quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão?
quando alguém morre também quero saber da qualidade da sua paixão: se tinha paixão pelas coisas gerais, água, música, pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, paixão pela paixão, tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, se posso morrer gregamente, que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra, os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem, homens e mulheres perdem a aura na usura, no comércio, na indústria, dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera, trémulos objectos entrando e saindo dos dez tão poucos para tantos objectos do mundo e o que há assim no mundo que responda á pergunta grega, pode manter-se a paixão como fruta comida ainda viva, e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, palavra soprada a que forno com que fôlego, que alguém perguntasse: tinha paixão?
Herberto Helder in, A Faca Não Corta O Fogo
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